Uma criança se olha no espelho e pensa ser a imagem que vê: um corpo bem contornado, com membros bem articulados que ela supostamente controla. Ao assumir uma ideia de si com base em algo que está fora, surge o sujeito da criança, um descentramento de si mesmo. Em poucas palavras, o sujeito é fundamentalmente uma alienação em relação à imagem que faz sobre si.
Aqui há algo inexoravelmente perdido, perde-se uma condição centrada em si mesmo para estar centrado fora de si. Em suma, o sujeito habita a periferia de sua cidade, passeia pelo seu centro, mas deve regressar quando anoitece.
O desejo é o que nos põe em movimento, nos obriga a este trajeto diário, mas também é o que nos mantém insatisfeitos, pois o que se encontra jamais é o que se procura. Há uma frase em Grande Sertão, Veredas que, de tão repetida perdeu sua virulência: “viver é muito perigoso…”. Por que viver é perigoso? Porque nosso desejo nunca está onde gostaríamos. Colocar Diadorim como mulher é apenas uma forma de reconciliar o desejo com seu objeto e tornar a história moralmente aceita. Independentemente do sexo de Diadorim, a questão é que Riobaldo se depara com um desejo impossível, inatingível, irrepresentável e, quanto mais vive este amor, mais teme perder-se a si mesmo – daí seu terror.
A utopia é encontrar um lugar como na música cantada por Elis: “eu quero uma casa no campo onde eu possa plantar meus amigos, meus discos, meus livros e nada mais”. Ao contrário da cidade, no campo não há a divisão entre centro e periferia, há apenas uma casa e nada mais, nada mais, nada mais – para não haver excessos ou carências, apenas adequação perfeita entre desejo e objeto. Enquanto no Sertão é preciso o deslocamento constante, a fuga, a busca, a caça, no campo está tudo plantado, imóvel.
O sujeito pararia, se pudesse, ficaria satisfeito com seu trabalho, sua família, seus amigos e seus livros, mas seu desejo o perturba, sua pulsão o acorda no meio da noite, tira-lhe o sono, o apetite, ele quer algo a mais, sem nunca saber o que é.
Aqui vale apontar um curioso “efeito colateral” dos antidepressivos: eles diminuem a libido – não é por outro motivo que eles são receitados também para ejaculação precoce. Poderíamos efetuar então uma pequena inversão: será que eles “funcionam” justamente porque diminuem a libido? Diminuem aquilo que inquieta o sujeito, que o deixa insatisfeito, ansioso. Também para mulheres que sofrem de TPM os antidepressivos tem sido usados, ou seja, sempre que surge um descompasso entre o sujeito e seu corpo, há algo para fazer calar o que o corpo quer falar.
Em tempo, não se trata de um combate aos psicotrópicos a priori; seu uso pode ser muito importante em diversos casos. Contudo, trata-se de combater a massificação dos psicotrópicos, utilizados amplamente para adequar o sujeito à sua imagem, mantendo seu desempenho, sua funcionalidade.
Os antipsicóticos, por exemplo, são fundamentais para o tratamento da esquizofrenia. Ainda assim, lembremos que eles diminuem bastante a libido e que Freud apontava, desde suas considerações iniciais, que a psicose consistia em uma supremacia das pulsões sobre o ego. Ou seja, diminui-e a libido, preserva-se a realidade. Neste sentido, vale manter acesa a questão perturbadora sobre o lugar possível para a sexualidade dos psicóticos.
Enfim, para além de procurar a escolha genuína para si, a monogamia ou a poligamia, homo, hetero ou bissexualidade, relacionamento aberto ou fechado, cissexual ou transexual, transgênero etc; trata-se de se apropriar da precariedade de qualquer escolha – seja qual for o estilo encontrado para viver a sexualidade, o desejo sempre vem perturbar, tirar o indivíduo de seu eixo, incomodá-lo.
O que é o desejo, afinal? Na falta de uma resposta melhor, roubo uma outra passagem célebre de Guimaraes Rosa: O desejo é esse diabo na rua, no meio do redemunho.
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